terça-feira, 6 de maio de 2008

O outro lado da cabeçada do Zidane


Em 10 de julho de 2006, um dia após a derrota da França pela Itália na Copa da Alemanha, escrevi um e-mail para alguns amigos. Resolvi publicar para deixar registrado minha tentativa de incursão pela crônica esportiva e também por incentivo de um dos meus 20 leitores, que na época recebeu o e-mail...


http://www.youtube.com/watch?v=SBaBrcBLbqw (para quem quiser rever a cena)


Rio de Janeiro, Redação do Jornal do Commercio, Gamboa, 10 de julho de 2006, 14 horas.


Senti pena do Zidane. Sou uma pessoa de sangue quente e talvez por isso tenha a tendência a compreender os arroubos emocionais que podem levar a atitudes como a tomada pelo craque. Sei que não há justificativa. Nem estou em busca disso. Mas podem estar certos de que a maior vítima daquele ato violento foi ele próprio. Seu descontrole levou-o a praticamente entregar a Copa na mão do adversário. Grupo medíocre, no qual não impera nenhum craque que chegue à sola do pé de Zinedine Zidane.


A cena que mais me comoveu foi a mostrada ontem pelo Fantástico: o goleiro da Itália, tentando despertar a consciência meio desorientada de Zidane, falou algo do tipo "Desculpa, Zidane, mas é cartão vermelho, cara , não tem jeito"...o olhar estático de Zidane, completamente desolado, começa a umedecer-se, seus lábios contraem-se , formando um leve "beicinho". Por frações de segundos ele não cai em prantos. O dono da bola de ouro da Copa de 2006 engole o choro em seco e sai de campo. O resto, todo mundo viu: o camisa 10 da seleção francesa retira-se do gramado cabisbaixo, passa pela taça e despede-se do futebol sob vaias.


Atire a primeira pedra quem nunca teve gana de dar uma cabeçada em certos tipos. Quem nunca sentiu o ímpeto de cabecear o tórax do Duda Mendonça durante seu "não-depoimento" à CPI dos Correios. Ou quem se segurou para não partir para cima do motorista de ônibus que arranca antes da velhinha subir. Ou daquele amigo metido a íntimo que te deixa sem graça na frente de pessoas com quem você não tem muita afinidade. Ou do espertinho que tenta furar a fila, ou vem pelo acostamento para passar sua frete no engarrafamento.Tenho certeza que todo mundo já sentiu vontade de dar suas cabeçadas.


Vivemos o tempo todo tentando nos segurar e passar por cima destes sentimentos menos nobres. Mas isso é humano, não resta dúvida. Cada um já teve o seu momento de descontrole emocional, no qual pouco importa se o que está em jogo é seu emprego, sua vida, seu casamento, status-quo ou uma final de Copa do Mundo. Todo mundo já teve aquele momento de chutar o balde porque tava cheio e veio alguém pingar a gota d'água. São os momentos nos quais a humanidade cede à animalidade e aí, babau!, agimos com descontrole. Ah! Imperdoável , dizem os certinhos, os seguidores de regra, os controlados. Pois eu digo - embora não vá fazer a menor diferença na vida do cara - eu te entendo Zidane!


Porque é preciso errar para aprender, alguém no mundo tem que se descontrolar de vez em quando. Alguém no mundo tem que perder a Copa um dia para não aceitar um comentário racista ou ofensivo no meio do jogo. Alguém tem que se descontrolar para ousar, se livrar do adversário e dar um balãozinho no "fenômeno", sem medo de ser feliz. Porque é do drible perfeito, da jogada bonita e das corridas em campo do 'vovô' de 36 anos que lembrarei quando pensar em Zidane. O que aconteceu ontem foi um descontrole. E todos nós já nos descontrolamos ou vamos nos descontrolar um dia. Aliás, todos nós não -- parafraseando Nelson Rodrigues -- só os normais. E o preço deste descontrole, Zidane pagou ontem no apito final. E como deve ter doído.


Sobre a "vítima" da cabeçada, li hoje que os jornalistas esportivos italianos chamam Marco Materazzi de "bicho", em função do seu temperamento estranho e pouco amistoso. Segundo a matéria publicada no jornal O Globo de hoje, Materazzi não fala com ninguém e chegou a ficar 2 anos sem dirigir a palavra ao próprio pai. Ontem mesmo, o zagueiro campeão do mundo deu duas demonstrações de ter lá seus diabinhos soltos: deu vários tapas na taça que todos beijavam e passou pela zona livre sem olhar para os lados e sem responder a ninguém.


Hoje, a agência de notícias Reuters publicou o seguinte "De acordo com diversas fontes muito bem informadas do mundo do futebol, parece que o jogador italiano Marco Materazzi chamou Zinedine Zidane de 'terrorista sujo', disse o SOS Racismo em comunicado". Se , de fato, a ofensa foi racista, seria mesmo muito difícil se segurar.


As veias do filho de imigrantes argelinos, vivendo em um país que enfrenta até hoje a intolerãncia e a discriminação, devem ter se dilatado na hora, sem dúvida. A cabeçada que o tirou do jogo pode ter sido o impulso, pelo nojo, de liquidar com o racismo como quem mata uma barata. O filósofo Aristóteles, em seu ensaio sobre a tragédia grega, afirma que o herói trágico é o tecelão da própria queda. Traduzindo, ele quer dizer que as tragédias teatrais imitam a vida, porque somos responsáveis por nossos atos . É a lei da causa e efeito. Zidane ficou sem a Copa. Talvez o tempo ainda mostre com mais clareza, o que Materazzi vai colher com as palvras dirigidas à Zidane.


Ana Paula Cardoso é apreciadora do bom futebol.

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